Imagine um grande esforço institucional para implementar novas diretrizes curriculares. Isso aconteceu certamente com a BNCC, mas pode acontecer com diversos tipos de instituição que decidam fazer uma grande reforma curricular ou até mesmo uma mudança metodológica. Ao final desse movimento pode surgir a sensação de que “agora está pronto” ou ‘já fizemos o planejamento”. Mas…
Mas existe uma grande chance de estar faltando algo, ou muitas coisas, na verdade. Os resultados de aprendizagem podem não ter melhorado de fato; a instituição pode estar com dificuldade para reagir rapidamente às evidências trazidas pelas avaliações; os estudantes podem simplesmente não estar desenvolvendo as habilidades que eram esperadas; ou as prática de ensino e de avaliação pode não ter se transformado tanto assim, apesar das “mudanças”. O que fazer diante deste cenário?
Uma transformação educacional nunca é um evento pontual. O currículo nunca deve ser tratado como uma estrutura fixa por muito tempo, mas sim como um organismo vivo em constante adaptação, orientado pela busca por melhores resultados de aprendizagem e maior impacto na vida pessoal e profissional dos estudantes. Acredito que grande parte da sensação de “dever cumprido” após um grande movimento institucional vem de uma incompreensão sobre o que realmente significa um processo contínuo de transformação. E de que esse processo contínuo pode ser, sim, prazeroso — especialmente quando está enraizado na observação do impacto real que provoca nos estudantes.
Neste artigo, discuto a transformação do ensino como uma estratégia mais intencional — e, justamente por isso, com maior potencial de gerar resultados visíveis e conquistas reais. Todo(a) educador(a) — seja gestor(a), professor(a) ou empreendedor(a) — deseja impactar a aprendizagem dos estudantes, certo? Por isso, uma transformação conduzida com propósito claro de impacto no estudante tende a encontrar menos resistência e mais engajamento.
Para embasar esta transformação intencional, vou utilizar a Taxonomia de Bloom como ferramenta de reflexão.
O CONTEXTO para a escolha de prioridades

Vamos imaginar que uma instituição enfrente um desafio concreto, identificado por meio de uma avaliação externa ou uma demanda de mercado. Suponha que tenha sido constatado que os estudantes precisam aprimorar sua capacidade de “articular um ponto de vista com um argumento coerente e convincente”.
Muito provavelmente, essa não será a única necessidade identificada. É possível que também tenham surgido lacunas em aspectos mais básicos da aprendizagem, como o uso adequado de pontuação, por exemplo. Embora “pontuação” e “argumentação” sejam correlatos e pertençam à mesma área – a escrita – podem surgir outras necessidades de aprendizagem em áreas completamente distintas.
E então, o que fazer? Enfrentar todas as dificuldades de aprendizagem ao mesmo tempo? Focar em uma de cada vez? Qual deve ser priorizada — e com base em que critérios? Deve-se iniciar uma grande mobilização institucional ou começar por áreas específicas?
Para decidir o que fazer, podemos recorrer aos níveis da Taxonomia de Bloom como forma de priorizar habilidades de maior desafio cognitivo e que tenham maior alinhamento com objetivos mais amplos da instituição, como sua missão e seus valores. Digamos que a instituição tenha como parte de sua missão o desenvolvimento de cidadãos com “pensamento crítico”. A argumentação oral e escrita está diretamente relacionada a este valor institucional, que é o pensamento crítico. Além disso, a capacidade de “articular um ponto de vista com um argumento coerente e convincente” é uma habilidade com maior nível de desafio do que a capacidade de utilizar “pontuação”. Por isso, concentrar os esforços de transformação do ensino no desenvolvimento da argumentação parece ser uma decisão estratégica e bem fundamentada.
Mas e a “pontuação”, como fica? É muito importante que os estudantes consigam utilizar pontuação até para expressar seus argumentos com clareza!!! É claro que sim, mas ela entra como um meio, não como o fim. Ou seja, não deve ser a prioridade do esforço de transformação do planejamento didático ou das atividades e avaliações.
Imagine se a instituição decide fazer um grande esforço para focar na melhoria do uso de pontuação. Veja que a “pontuação” em si, sem um “para quê” mais significativo para os estudantes, pode ser um grande “balde de água fria” no interesse e no engajamento. Por isso, é mais estratégico focar em uma habilidade de maior complexidade cognitiva, que permita articular um “para quê” mais significativo e, com isso, valorizar o uso da pontuação como ferramenta para alcançar um objetivo mais amplo e relevante.
A habilidade de “produzir textos de opinião utilizando argumentação coerente e convincente” faz parte do pensamento crítico. Os estudantes tendem a perceber com mais facilidade o propósito dessa habilidade, já que ela contribui para sua autonomia intelectual e para a capacidade de defender suas próprias ideias de forma clara e convincente — algo que tem valor tanto na vida acadêmica quanto pessoal e profissional.
A JORNADA de transformação rumo à habilidade prioritária

Há uma distância significativa entre definir uma prioridade institucional e efetivamente transformar o ensino no chão da sala de aula, gerando mudanças concretas e visíveis nos resultados de aprendizagem – especialmente quando se trata de uma habilidade sofisticada. Não basta comunicar a prioridade e esperar que os professores saibam, de forma imediata, o que precisa ser modificado em seus planejamentos. Esse desafio se intensifica quando os planos de ensino são excessivamente prolixos e os objetivos de aprendizagem não estão claramente definidos ou articulados com a prática.
Planejamentos prolixos e pouco focados podem ser bastante comuns quando resultam de uma falta de priorização das diretrizes curriculares. Veja o caso da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) como exemplo de diretriz que precisa ser priorizada para de fato impactar a aprendizagem em sala de aula. A BNCC representa um progresso notável, sendo muito moderna e eficaz como guia para o planejamento. Porém, existem muuuuuuuuuitas habilidades listadas, e inúmeras habilidades são apresentadas em parágrafos longos, com múltiplas opções, contextos e possibilidades. Por isso é FUNDAMENTAL fazer uma PRIORIZAÇÃO estratégica destas diretrizes. E essa priorização não é uma opinião pessoal, mas parte de um movimento internacional consolidado, com autores importantes discutindo melhores práticas (Ex: Larry Ainsworth, “Power Standards: Identifying the Standards Essencial for Student Sucess”).
Veja este exemplo de uma habilidade da BNCC para os anos finais do Ensino Fundamental, relacionado à produção de textos de opinião:
(EF89LP10) Planejar artigos de opinião, tendo em vista as condições de produção do texto – objetivo, leitores/espectadores, veículos e mídia de circulação etc. –, a partir da escolha do tema ou questão a ser discutido(a), da relevância para a turma, escola ou comunidade, do levantamento de dados e informações sobre a questão, de argumentos relacionados a diferentes posicionamentos em jogo, da definição – o que pode envolver consultas a fontes diversas, entrevistas com especialistas, análise de textos, organização esquemática das informações e argumentos – dos (tipos de) argumentos e estratégias que pretende utilizar para convencer os leitores.
Uma habilidade descrita desta forma extensa e abrangente é perfeitamente normal para uma diretriz curricular, mas NÃO É OK para um planejamento de AULAS. Agora imagine um planejamento de aulas para o ano letivo onde estas habilidades são copiadas e coladas na íntegra, sem qualquer processo de priorização ou reelaboração. Quando diretrizes como esta não são devidamente interpretadas e adaptadas, seja porque não houve apoio, conhecimento ou tempo suficiente, fica muito difícil para o(a) professor(a) identificar exatamente o que modificar no ensino e em qual sequência. Nesses casos, a tendência é se afastar das inovações propostas por diretrizes bem elaboradas e retornar a abordagens conteudistas ou práticas tradicionais, que muitas vezes resultam em mais ensino e menos desenvolvimento de habilidades.
O que realmente facilita a identificação da JORNADA de aprendizagem que precisa ser aprimorada — para avançar em uma prioridade institucional — é um planejamento didático priorizado, estruturado como uma lista de objetivos específicos, claros e organizados em uma sequência pedagógica coerente. Mas, se esse tipo de planejamento ainda não existe, o caminho é retornar às diretrizes curriculares e realizar uma priorização FOCADA exclusivamente na habilidade ou competência definida como prioritária pela instituição.
Em nosso exemplo, a prioridade institucional é a capacidade de “produzir textos de opinião utilizando argumentação coerente e convincente”. Uma pesquisa na BNCC mostra uma série de habilidades relacionadas a este objetivo, que podem ser organizadas em uma sequência com base nos níveis crescentes de desafio da Taxonomia de Bloom. Essa organização permite, inclusive, incorporar aspectos como o uso adequado da pontuação, não como um fim em si mesmo, mas como um recurso expressivo que contribui para o sentido e a eficácia da argumentação:
NOTA sobre CHATGPT e priorização:
Nos dias de hoje, com o uso da IA, o processo de priorização pode ser facilitado e agilizado. É possível, por exemplo, enviar ao ChatGPT um documento extenso e complexo, como a BNCC ou qualquer outra diretriz, e solicitar que ele selecione habilidades com base em palavras-chave específicas. Além disso, o ChatGPT pode ser utilizado para aprimorar a redação das habilidades, a partir da priorização dos elementos-chave que serão efetivamente ensinados
EXEMPLO – Priorização de habilidades da BNCC para atingir o objetivo de “produzir textos de opinião utilizando argumentação coerente e convincente” – o texto das habilidades também foi “priorizado” e reescrito.
Nota: Lembre que para “criar” com autonomia e voz própria, é importante antes ser capaz de ler para analisar e avaliar, além de ser capaz de aplicar técnicas específicas.
Nível de Criação:
- Produzir um artigo de opinião sobre tema polêmico, assumindo uma posição clara, utilizando argumentos consistentes e adequados ao público-alvo. (embasado na habilidade EF09LP03)
- Planejar um artigo de opinião a partir do levantamento e da organização de dados, informações e argumentos já existentes sobre o tema (embasado na habilidade EF09LP10)
Nível de Avaliação:
- Avaliar opiniões ou posicionamentos em textos argumentativos com base na força dos argumentos e contra-argumentos apresentados (embasado na habilidade EF89LP04)
Nível de Análise:
- Analisar artigos de opinião, editoriais, cartas de leitor e resenhas críticas, posicionando-se frente à questão controversa apresentada (embasado na habilidade EF89LP03)
- Analisar o uso de recursos persuasivos em textos argumentativos e seus efeitos de sentido (embasado na habilidade EF89LP06)
Nível de Aplicação:
- Utilizar a pontuação de forma correta na produção de textos, respeitando a norma-padrão da língua e a construção de estruturas sintáticas complexas. (embasado nas habilidade EF08LP04 e EF09LP04)
Nível de Compreensão:
- Explicar os efeitos de sentido do uso de pontuação em textos argumentativos (embasado na habilidade EF89LP16)
Acompanhamento do resultado de aprendizagem

Quando o planejamento se torna mais específico, claro e coerente (como no exemplo anterior), é mais fácil para professores e gestores acompanharem o impacto deste planejamento na aprendizagem. Mas para isso, é preciso desenvolver atividades de avaliação mais precisas, ou seja, apropriadas à habilidade que se deseja avaliar. E lembrando sempre que dados de avaliação devem servir para a REFLEXÃO e o DIÁLOGO dentro da instituição, visando o benefício dos estudantes.
Embora seja possível utilizar testes de múltipla escolha para avaliar certos tipos de raciocínio, esse método não é adequado para avaliar habilidades mais complexas, como a criação de textos argumentativos, por exemplo. Nesse caso seria necessária uma redação e uma avaliação com base em critérios claros de sucesso no objetivo. Para determinar os critérios de forma clara, é preciso apontar cada elemento que deve estar presente e as características de cada elemento:
Para determinar se o estudante é capaz de “produzir textos de opinião utilizando argumentação coerente e convincente” é preciso verificar se…
Tese: o estudante é capaz de produzir um texto de opinião apresentando a sua tese de forma resumida e clara.
Argumento: o estudante é capaz de produzir um texto de opinião embasado em dados, com argumentos e contra-argumentos coerentes e persuasivos.
Pontuação: o estudante é capaz de produzir um texto de opinião utilizando pontuação para efeito de sentido e compreensão.
Rubricas de avaliação qualitativas como esta ajudam a verificar se os estudantes estão de fato atingindo o objetivo, e indicam qual dos elementos está mais forte ou mais fraco. É possível associar pontos a cada elemento, gerar notas e gráficos. Mas para que tudo isso funcione, os(as) professores(as) precisam de formação, tempo e apoio. O resultado é uma intervenção muito mais eficiente no ensino via planejamento, com mais impacto na aprendizagem – afinal ‘so assim é possível “colocar o dedo” no que precisa ser transformado.
…. Este artigo é uma repostagem do BLOG da silvanascarsoed.com
Para saber mais….
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