Não importa se você cria cursos livres, se utiliza ementas no ensino universitário, ou se utiliza habilidades pré-definidas como na Base Nacional Comum Curricular. Em todas estas situações, o conceito de “ideia essencial” favorece um tipo de planejamento que traz um diferencial de aprendizagem – e no caso dos cursos livres principalmente, um diferencial de mercado.
O conceito de “ideia essencial” (Big Idea) vem do importante trabalho de Wiggins & MacThighe em seu livro “Understanding by Design” (2005). Este trabalho descreve o que se chama de “planejamento reverso”, ou “comece pelo final”. E a “ideia essencial” é a base desta visão do que é o “final desejado”, ou seja, qual é o resultado de aprendizagem que queremos ao final de um curso. Por isso uma “ideia essencial’ é tão importante: ela aponta para o diferencial de um curso. Vamos a um exemplo bem acessível do que significa uma “ideia essencial” em oposição ao conteúdo, como guia para o planejamento de ensino.
O exemplo de Rita Lobo no ensino de culinária
Quem gosta de culinária deve conhecer Rita Lobo, mas quem não conhece vale a pena conhecer. Mas antes de falar dela, vamos usar o exemplo do ensino de culinária tradicional para se opor à como a Rita Lobo aborda este mesmo ensino.
A maioria das receitas culinárias e mesmo programas que ensinam a cozinhar tradicionais, pela minha experiência, apresentam dois problemas na sua abordagem de ensino. O primeiro é a falta de detalhes, ou seja, a falta de ensino “explícito” de tudo o que é necessário para que nós reles mortais consigamos reproduzir a receita. O segundo é o foco em tópicos e subtópicos: sopas, carnes, massas, doces…., por exemplo. Então alguém que tem muitas dúvidas na cozinha tem que aprender “tudo de massas”, “tudo de carnes”, etc. Ou mais ou menos assim. E para tentar resolver dúvidas é preciso passar por todas as receitas, ou muitas.
O que faz Rita Lobo de diferente? Ela foca em diversas “ideias essenciais”, o que facilita muito a aprendizagem, retenção e escolha dos programas e módulos de ensino. A principal “ideia essencial” da Rita Lobo, que ajuda a criar um diferencial de mercado, é a seguinte : “comida de verdade”. Tudo o que ela ensina foca neste ideia fundamental que tem toda uma lógica: aprender a cozinhar é importante e também possível no dia a dia, porque assim podemos utilizar ingredientes não processados e comer “comida de verdade”, com a finalidade de melhorarmos nossa saúde. Esta pequena explicação para “comida de verdade” como “ideia essencial” é o que Wiggings & McThighe descrevem como a “compreensão duradoura” que desejamos para os nossos estudantes. Então é através de todas as suas receitas e dicas que Rita Lobo transmite e solidifica a ideia de “comida de verdade”, porque é no decorrer de suas aulas que vamos entendendo o que isto significa na prática.
E mesmo dentro dos seus programas, Rita Lobo usa outras “ideias essenciais” menores, associadas às dificuldades e necessidades do seu público: “refeição em uma panela só”, “meu filho não come”, “reaproveitando as sobras”, “o que você pode fazer com lentilha”, etc. Você vê que ela não usa como tema os tópicos tradicionais da culinária. Ela usa como tema diversas “ideias essenciais”. Além disso, a Rita Lobo ensina tudo o que é precisa saber para que a receita final dê certo. Por isso o ensino é eficaz e o resultado das suas receitas é ótimo.
Então vamos entender como este exemplo da Rita Lobo se traduz nos três tipos diferentes de cursos que mencionei no início deste artigo: cursos livres, curso baseados em ementas no ensino universitário, curso do ensino básico baseados na Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Cursos livres: ideia essencial como diferencial de mercado
Se você cria cursos livres, o exemplo da Rita Lobo já serve como uma boa introdução. Mas vamos ver um exemplo de curso muito procurado na Udemy, por exemplo. Para quem não conhece, a Udemy é um chamado “marketplace” de cursos livres, com milhões de estudantes e milhares de cursos que podem ser criados por qualquer pessoas ( desde que tenha uma qualidade mínima). No seu Business Report 2023, a udemy apontou os tópicos mais procurados no seu marketplace, e as ferramentas de produtividade estão entre elas. Ouve um aumento de consumo de 37% para cursos de Excel e 123% para cursos com “Dicas e atalhos do Excel”. Vejam que interessante a grande procura por “dicas e atalhos”, ou seja, cursos mais específicos do Excel. No entanto, quando procuramos cursos sobre o Excel na Udemy, a maior parte do que aparece são cursos do tipo: “Excel do Básico ao Avançado”, “Excel Completo”. No entanto, apesar de ainda ser popular, as pesquisas apontam necessidades mais específicas.
Neste exemplo sobre cursos de Excel na Udemy, é possível ver a grande concorrência, porque os cursos têm até títulos muito parecidos. Foi só entrando na descrição de um deles que pude ver um projeto prático para uma planilha de custos. Mas imagine entrar em todos eles para ver qual se adequa mais às minhas necessidades? E olhando os tópicos dentro dos cursos, todos os que eu vi eram bastante conteudistas, no sentido de ensinar as funções uma a uma. Nada contra este tipo de curso, que apresenta todas as ferramentas e podem ser utilizados como repositório de referência. Mas para realmente aprender, esta abordagem tem pouco sucesso, e a desistência pode ser grande. É muito chato aprender desta maneira sequencial e o estudante precisa ter muito vontade de passar por todo o processo. Além disso, estes cursos não oferecerem um diferencial de mercado.
Vamos então ver algumas opções de “ideia essencial” para um curso de Excel. Uma “ideia essencial” surge de uma compreensão diferenciada do(a) professor(a) ou professora. Ou seja, este professor(a) tem muita experiência e já encontrou várias utilidades específicas no Excel. Vamos utilizar a minha experiência como exemplo. Em duas situações eu achei o Excel muito útil e aprendi como utilizá-lo para o meu propósito. Um dos usos do Excel que eu gosto muito é para acompanhar o desempenho dos estudantes e classes através de critérios de avaliação. É possível fazer muitas coisas legais com o Excel que geram dados úteis para ajustar o ensino. Mas vou focar o meu exemplo de curso em outro uso que faço do Excel que é para acompanhar meus ganhos e gastos financeiros e poder planejar o quanto consigo economizar para investir para o futuro.
Vocês podem ver que tenho duas “especialidades”, que podem ser dois temas diferentes para dois cursos diferentes sobre Excel. O importante é a ideia essencial que eu posso levar para o curso e contribuir para a aprendizagem e a vida de outras pessoas. Se eu fosse criar um curso nos moldes tradicionais, provavelmente usaria o termo e o foco em Excel para Finanças Pessoais. Mas eu posso oferecer mais do que isso. Eu posso ensinar várias funções do Excel enquanto ensino como organizar finanças como entradas e saídas, mas levando em conta o que sobra de dinheiro e como fazer simulações para diferentes cenários de economia/poupança. A minha ideia essencial é portanto: cenários de poupança pessoal. E a “compreensão duradoura” é o que eu expliquei acima sobre este tema. O objetivo da ideia essencial é gerar um foco de interesse para o aprendizado prático. O planejamento do curso usa a “ideia essencial” como uma linha que conecta toda a aprendizagem em uma sequência que tem sentido para quem aprende.
Só uma pequena nota para observação para quem não conhece muito o Excel: uma das funções que eu considero ser mais poderosas nas planilhas digitais é a possibilidade de criar tabelas, gráficos e funções (cálculos) para simular diferentes cenários. Isso porque depois que colocamos as fórmulas, basta mudar os valores para ver como tudo muda e analisar as possibilidades de economia e seu impacto na poupança a longo prazo.
(NOTA: Eu não sou especialista em finanças, este é apenas um exemplo)
Cursos baseados em ementas: ideia essencial para priorizar conteúdo
E os cursos universitários que precisam seguir ementas da instituição, recheadas de conceitos e conteúdo? Tem alguma forma de escapar do “massacre” de conteúdo e focar em uma ideia essencial? Tem sim, e se baseia no movimento de priorização de competências e habilidades que acontece nos EUA e na Inglaterra, pelo que sei. Este movimento visa definir o que é prioritário aprender em cada etapa da vida acadêmica, deixando o restante do conteúdo/habilidades/competências como auxiliares na aprendizagem. Este movimento de priorização se encontra com o conceito de ideia essencial para ajudar no planejamento e garantir uma aprendizagem bem-sucedida.
Mas então como dar conta de toda a ementa? Vamos ver este exemplo abaixo, de uma ementa de um curso de bioética em enfermagem. Nesta ementa existem muitos conceitos importantes e também muito conteúdo na forma de diferentes contextos onde a bioética pode ser aplicada como eutanásia, aborto, AIDS, pacientes terminais, etc. Imagine ensinar todos estes conteúdos, com os detalhes de cada contexto e sua relação com todos os conceitos de bioética. A pergunta que devemos nos fazer é a seguinte: o que o estudante precisa aprender para entender bioética e conseguir aplicar em situações variadas? Qual é o foco que pode “amarrar” de forma lógica a maior quantidade de conteúdo e/ou conceitos?
Minha resposta para essa pergunta é a seguinte: os estudantes precisam de um foco na forma de uma ideia essencial e também de um exemplo concreto para aprender sobre bioética de forma aprofundada. Para mim, “bioética como justiça social” é uma ótima ideia essencial porque em torno dela é possível ensinar os conceitos principais e incluir toda a questão de saúde pública, direito e justiça social, que estão na ementa. E a ideia de “bioética como justiça social” pode se adequar a qualquer um dos contextos onde bioética é aplicada, porque a discussão envolvendo justiça social será muito mais complexa (quero crer), e portanto mais fácil de ser transferida depois para situações de saúde privada.
A priorização do conteúdo da ementa em torno da ideia essencial permite que o(a) professor(a) gaste mais tempo no processo de ensino-aprendizagem do que foi priorizado. Isso não quer dizer que o restante do conteúdo não pode ser “coberto”, mas significa pouco tempo dedicado ao ensino do conteúdo auxiliar – talvez até apenas uma discussão após algumas leituras. O importante é que os estudantes se engajem com a ideia essencial como forma de dar sentido à todas as informações e conceitos, para aprender de forma aprofundada. A aprendizagem neste formato é mais bem-sucedida e a transferência deste conhecimento para novas situações deve ser mais fácil. Uma ideia essencial em um curso universitário não precisa representar mudança de nome do curso, mas dever representar mudança de foco na forma de ensinar e aprender.
Cursos do ensino básico: ideia essencial para encontrar foco nas habilidades da BNCC
E agora como fica o ensino básico que já tem à disposição habilidades e competências bem desenhadas e definidas para cada ano escolar? O que mais é preciso? Bem, o movimento de priorização nos EUA e Inglaterra que eu mencionai acima foca exatamente no ensino básico e nas suas diretrizes curriculares tipo BNCC. E porque afinal existe este movimento? Porque o esforço de desenvolver habilidades e competências também gera uma quantidade grande de expectativas que na prática não são possíveis de serem aplicadas na sua totalidade, a não ser com superficialidade no ensino-aprendizagem. A lista de habilidades se torna então um guia extremamente útil que podemos priorizar. Podemos escolher habilidade para ensinar de forma prioritária – com mais tempo de ensino e foco na avaliação – e habilidades auxiliares – apenas “cobertos” com pouco tempo de ensino e sem avaliação somativa e/ou como prioritárias em outros anos escolares.
E mesmo dentro de uma mesma habilidade, quantas focos e possibilidades podemos encontrar? Podemos ver essa característica claramente na habilidade do exemplo abaixo. É possível e desejável escolher um “foco”, que representa uma “ideia essencial” para guiar a aprendizagem e o planejamento. A ideia essencial explicita uma compreensão duradoura que o(a) professor(a) especialista tem e deseja como resultado final de aprendizagem para seus estudantes.
A habilidade do exemplo acima apresenta várias possibilidades e conceitos: paternalismo, autoritarismo, populismo, cultura brasileira, cultura latino-americana, ditadura, democracia, autonomia, liberdade, cidadania. Ensinar todos estes conteúdos em uma única unidade de estudo pode sobrecarregar os estudantes. Por isso podemos encontrar um foco nesta habilidade através de uma ideia essencial que já está contida na habilidade mas que trazemos à tona como eixo central, para conseguirmos desenvolver de fato a competência de “participação no debate público”. A BNCC é um excelente trabalho que trouxe muito mais clareza e orientação para todo o ensino brasileiro. O nosso trabalho agora é adaptar às nossas necessidades e especialidades.
A combinação da ideia essencial, com um contexto ou conteúdo específico para ensinar esta ideia essencial, criam um objetivo de aprendizagem para a unidade de estudo. Eu recomendo também incluir um “para quê” aprender aquela habilidade, que muitas vezes vem explicitado nas competências associadas à habilidade. E por fim, não devemos esquecer que um objetivo de aprendizagem inclui um verbo de ação que define o nível de desafio apropriado para aquele grupo de estudantes.
Para mais detalhes sobre objetivos de aprendizagem, você pode acessar meu livro “CLAREZA DO PROFESSOR: (Re)Considere a sua identidade de educador(a) para uma aprendizagem ativa eficaz.”
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NOVO! … cursos sobre PLANEJAMENTO DIDÁTICO EFICAZ DE CURSOS E AULAS
Estou em processo de criação de cursos sobre planejamento didático para as três vertentes descritas acima: cursos livres, cursos baseados em ementas e cursos baseados em habilidades da BNCC. O primeiro curso a ser lançado será sobre cursos livres. Os cursos, que terão a mesma base, porém com detalhes exclusivos para cada vertente e exemplos específicos também.
Você irá aprender a criar uma estrutura didática que favorece uma aprendizagem ativa e bem-sucedida, e assim você também vai aprender como associar miniaulas e atividades práticas para cada nível de desafio na sua sequência didática.
Adicione um comentário! O que mais você gostaria de aprender em um curso sobre planejamento didático?